Grau Zero 2023

Grau zero, 2019
folha de prata e óleo sobre linho – 100x100cm

o GRAU ZERO de todas as coisas

 

“(…) é a maneira de existir de um silêncio;

perder voluntariamente qualquer recurso à elegância ou à ornamentação”[1]

 

Numa tarde chuvosa, em Lisboa, subimos com dificuldade uma escada estreita de madeira para mergulharmos num determinado espaço. Recortado, sinuoso, labiríntico, quente, formalmente assemelhado a uma casa, embora nas suas várias divisões percebamos desenvolverem-se um conjunto de acções que se afastam da funcionalidade doméstica para rapidamente se aproximarem de uma disciplina rigorosa com procedimentos e regulações próprias. Estamos num espaço de trabalho – num atelier – e a medida das suas características físicas decorre em absoluto das necessidades inerentes à prática ali desenvolvida: a Pintura (e os seus vários desdobramentos).

Catarina Pinto Leite tem vindo, desde meados dos anos 90 do século passado, a desenvolver uma prática pictórica que resulta de um manifesto interesse pela ‘paisagem’ entendida enquanto modelo de representação. Através de um cuidado e sintético domínio técnico – assente na sua formação no restauro de pintura antiga – tem desenvolvido uma investigação plástica em torno das dimensões temporais e espaciais da paisagem, da sua exterioridade e da sua interioridade, dos seus limites e fronteiras e do quanto a sua presença pode ser aglutinadora da presença física do espectador e, mais particularmente, da constituição de um determinado olhar.

Através de uma abordagem que coloca em diálogo os seus vários processos de relação – racional, emocional, onírico, projectivo – sempre alicerçados nos processos de memória (ora recorrendo ao seu arquivo de memórias pessoais, ora fazendo uso de aspectos ou episódios decorrentes de uma memória colectiva, partilhada), tem vindo a propor conjuntos de obras que resultam de explorações em torno de uma linguagem atmosférica, tendencialmente abstractizante, que parece querer convocar um certo sentido de transcendência.

Quando é vulgarmente referido o termo ‘paisagem’ está-se tendencialmente a referenciar uma determinada porção do mundo real (que nos é exterior), ou seja, fala-se de um determinado plano de visão que é dirigido ao campo do visível (ao que está fora de nós disponível para ser visto). Ora, esta vulgarização tende a esquecer que o termo ‘paisagem’ resulta de uma concepção mental, de uma forma sistematizada de ordenação do visível assente em princípios definidores e estruturantes que nos permitem estabelecer uma determinada relação com o campo visível através da sua transformação em imagem. Uma ‘paisagem’, é por isso, sempre uma imagem. Uma ‘paisagem’ é, por isso, sempre uma construção. E como tal, resulta de uma hierarquia baseada num equilíbrio composicional que é inferido a partir de uma ideia de ordem do mundo (uma pré-ordem, anterior ao humano, supra-humana, … em última instância, divina).

O conjunto de pinturas agora apresentadas no contexto da exposição GRAU ZERO resulta de várias tentativas de aproximação a esta dimensão, e muito particularmente, a uma ideia de rarefacção da paisagem instaurada a partir da sua quase invisibilidade. Uma espécie de procura dos limites da representação através de um modelo de representação que se projecta no seu apagamento (ora através da acumulação da matéria pictórica, ora através da sua rara, ou quase inexistente, presença).

Tomemos como exemplo as duas pinturas de maiores dimensões (com os títulos “Dive Into” e “Grau Zero”, datadas respectivamente de 2020 e 2019) para nos aproximarmos de uma outra dimensão que nos parece ser convocada pelo trabalho de Catarina Pinto Leite: o quanto as suas paisagens parecem poder constituir-se, para o espectador, como territórios para a edificação de uma relação física e, consequentemente, geradora de uma determinada ideia de espaço.

Estamos perante imagens rarefeitas, evasivas, despidas, pouco descritas, construídas a partir da combinação de matéria pictórica (óleo) – amplamente reduzida na sua paleta cromática – e cuja aplicação foi alvo de sucessivos avanços e recuos, sucessivas camadas que, à vez, tapam ou destapam, escondem ou revelam, anunciam ou denunciam, invocam ou afirmam. É justamente esta paleta cromática, reduzida ao mínimo, a sua distribuição ampla, a escala e a falta de limites objectivos para a sua leitura que parecem poder convocar a memória do espectador e, muito concretamente, a memória de uma determinada experiência física.

O demorado processo de reconhecimento visual convoca uma memória física que, por sua vez,  alimenta o processo de reconhecimento visual. Tudo decorre ciclicamente. Estamos perante elementos visuais que convocam em nós uma memória física específica: o toque da neve, a sensação de frio, a dificuldade de observação num contexto espacial gelado. E, apesar de nos encontrarmos num lugar que se nos propõe como uma espécie de grau zero de todas as coisas (essa “maneira de existir de um silêncio”, como refere Barthes), é justamente através desta evocação de uma memória física que construímos solidamente a crença de estarmos perante uma ‘paisagem’.

 

Ana Anacleto

Dezembro 2022

 

[1] Barthes, Roland