Rua de mão única 2022

Exposição Rua de Mão Única, Galeria Diferença

Junho 2022

Suspender, sentir e olhar

 

 

A instalação “Rua de mão única” é um projecto que a artista tem vindo a desenvolver há vários anos. Não foi imediatamente enquadrado sob a égide de Walter Benjamin, a partir do seu livro Rua de mão única: Infância berlinense: 1900, mas a sua importância veio a presentificar-se numa prática de trabalho estreitamente ligada ao atelier e ao vocabulário dos materiais, ou seja, à forma de manusear, transformar, colar, sobrepor, replicar e distender. Em suma, a uma modalidade da vida em estreita correspondência com a prática artística, com os humores, os desencantos, a esperança, a paixão, o desvelo, a disciplina, o conhecimento e a experimentação. Catarina Pinto Leite é proficiente na manualidade que o seu trabalho exige e domina diversas técnicas sobre a forma (e a forma é neste aspecto determinante) como pode trabalhar o papel japonês. Nesta relação entre a proficiência e a experimentação está a ideia subjacente à instalação no espaço da galeria da Diferença, que se corporaliza e nos propõe uma experiência indexada à ideia de um percurso auto-referencial e de subtil intimidade. A galeria passa, deste modo, a transformar-se numa metáfora da casa, como espaço de trabalho, intimidade, reflexão, e leitura de textos literários e filosóficos, como a obra de Walter Benjamin que empresta o título a esta instalação. Este é o contexto central da obra da artista que, enquanto gesto, nos propõe um lugar de encontro, memória e transitoriedade, entre o público e o privado. Uma obra de arte como instalação site specific, porque é pensada para aquele lugar, e que em qualquer outro poderá ser uma rua de mão única ou uma casa, mas nunca no sentido e na experiência subjectiva que a obra instalada nesta galeria proporciona.

Regressemos aos aforismos de Benjamin, que sedimentaram pela leitura este projecto artístico: num deles, intitulado “Arquitectura de interiores”, vamos ao encontro de uma descrição sintética do tratado na sua formulação árabe, e do modo como se articula o exterior com o interior, ou seja, o que está fora e lhe confere uma primeira forma, aparente, e o que está dentro: “A superfície das suas considerações não é plasticamente animada, mas antes recoberta por uma rede de ornamentos que se entrelaçam ininterruptamente. Na densidade ornamental desse tipo de exposição desaparece a diferença entre os desenvolvimentos temáticos e as divagações.” A obra da artista, que percorremos, não se expõe ao desenvolvimento do ornato no seu sentido mais visual, mas é entrelaçada e, por analogia, simultaneamente homogénea e no seu contrário informe. É uma instalação densa, mas translúcida, marcada pela geometria da galeria e ao mesmo tempo sinuosa nas superfícies que acompanham o trânsito do corpo que as percorre. Deste modo, a instalação é a própria obra, fragmentada mas agregadora de uma ideia de multiplicidade que se desenha entre as divisões do percurso construído e as diversas camadas, quase invisíveis, do papel japonês, suave mas forte, sensual mas também diáfano, delicado mas austero.

A exposição, enquanto obra visual, compreende os elementos em suspensão e também outros elementos emoldurados, como espaços íntimos dentro do espaço mundano, mas todavia partilhado. Dentro destas cápsulas estão peças de dimensão mais reduzida: algumas são imagens de matriz fotográfica que aliam o limite rigorosamente rectílineo da imagem à dobra manuseada e à sobreposição, na densidade das camadas interiores, como por vezes pensamos sobre a nossa própria memória. E a memória, no trabalho de Pinto Leite, é um lugar habitado, um arquivo da memória do corpo que a artista vai revelando através do gesto, numa inscrição moldada pelo tempo.

A instalação assume a ambiência de uma casa, mas também da rua; é de dentro e de fora, sem se revelar nos interstícios da vida, mas sem esquecer os registos, os gestos, e a sua replicação. Porque ainda que pareçam os mesmos, são sempre outros em momentos e espaços diferidos. Nos seus estudos e investigações literárias, a artista vai desenhando um outro itinerário, por vezes coincidente com as exposições da sua obra. Neste caso, e nesta galeria, fica a partilha de um trecho de Mira Schendel que nos diz o seguinte: “não precisa pintar aquilo que se vê, nem aquilo que se sente, mas aquilo que vive em nós.”

João Silvério


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